Tomo I
Houve uma confusão. Os emails férteis se amontoavam e criavam uma ciranda ao redor da casa. Perguntas flutuavam, se erguiam, batiam na porta, se escondiam embaixo da cama. Não sabia mais a ordem, elas me possuíram, se proliferaram, se misturaram de um email a outro. O questionário pariu mais filhos.
Tomo II – O original
1- No processo criativo que vc pretende orientar vc sempre ocupará uma função definida e fixa ou isso poderá variar?
No processo serei: um provedor de roupas; uma máquina de dispositivos; um olho que acompanha a distancia; um organizador de arquivos; um fotografo amador; um inventor de passeios públicos; um propositor de ações aleatórias.
2- Se a função poderá variar, qual a denominação das funções que vc pretende desempenhar nessa variação? (diretor, co-diretor, coreógrafo, preparador corporal, vídeo maker, autor anônimo, co-autor anônimo, etc...)
Mais uma vez: um provedor de roupas; uma máquina de dispositivos; um olho que acompanha a distancia; um organizador de arquivos; um fotografo amador; um inventor de passeios públicos; um propositor de ações aleatórias.
3- Vc diria que já realizou algum tipo de treinamento para atuar nessas funções? Como seriam esses treinamentos? ( Não me refiro aqui necessariamente à técnicas de dança ou outras, e sim àquilo que vc considera uma ação de treino para a sua prática artística).
Abro o armário, me visto, aquela roupa, aquela, aquela roupa. Caminho, aquele caminho, aquele, aquele caminho. Encontro aquela pessoa, aquela, aquela pessoa. Vamos para aquele lugar, aquele, aquele lugar. Falo aquelas coisas, aquelas, aquelas coisas. Como aquela comida, aquela, aquela comida. Corro para aquele destino, aquele, aquele destino. Me preocupo com aquelas responsabilidades, aquelas, aquelas responsabilidades. Reajo aquele olhar, aquele, aquele olhar. Me identifico com aquele grupo, aquele, aquele grupo. Me emociono com aquele filme, aquele, aquele filme. Arrumo o cabelo daquele jeito, daquele, daquele jeito. Sinto dor naquele lugar, naquele, naquele lugar. Tenho vergonha daquela parte, daquela, daquela parte. Procrastino aquele compromisso, aquele, aquele compromisso. Faço aquele gesto, aquele, aquele gesto.
4- Por quais motivos vc escolheu esse(s) tipo(s) de treinamento (s)?
Porque a Mariana Sucupira anunciou ser necessária sua própria evasão, sua própria falência, urgindo então novas parodias de si para erguer o cotidiano.
5- Esse treinamento se relaciona de alguma forma ou faz parte dos processos criativos que participa? Como?
Qual treinamento não se relacionaria com as parodias de repetição de si?
6- O que vc entende por processo de criação? Quais seriam os aspectos que vc considera fundamentais para denominar algo como processo de criação? Quais ações ou princípios podem gerar um processo criativo? ( aqui o intuito é que vc fale do processo de criação a partir da sua experiência, não é uma generalização).
Um ponto inicial qualquer. Uma escolha. Um fechamento arbitrário pelo qual você sente tesão. Um tesão que se desenrola, mas que as vezes pode brochar, as vezes pode virar ódio, as vezes virar remanso, as vezes, só as vezes, continua tesão. Uma honestidade confusa, que desconfia de qualquer verdade, mas que se anuncia. Uma permissão para a possessão de uma idéia ou de uma fisicalidade ou de uma repetição. Uma obsessão. Insistir e repetir atos como se bastassem, como se fossem eles, são eles, são eles, são eles.
7- Quais são seus interesses artísticos? O que é importante para vc pesquisar, discutir, experimentar, colocar em cena?
A falência.
8- Esses interesses artísticos são pontuais, dependem do projeto, ou é possível visualizar alguns que se repetem por vários trabalhos? Quais?
Se achasse possível o que é pontual, acharia possível o novo.
9- Esses interesses artísticos estão presentes no processo de criação? De que forma? Se possível dê exemplos.
As roupas batalham por tomar posse de um corpo, criarem suas autônomas e repetitivas identidades, querem ser escolhidas, levantam as mãos ansiosas, “me escolhe, me escolhe”, elas tem certeza que são a saída apropriada, a repetição justa, o eu mais bem acabado. Mas mesmo que insistam, cedo ou tarde, estarão no amontoado cesto de roupas sujas.
10- Como vc acha que o produto/obra se relaciona com seu respectivo processo?
Eu = produto/obra
Tomo III – O invasor
11 - O que é essa dança?
Uma mentira. Uma série de mentiras. Uma mentira que se repete ao ponto de verdade. Uma verdade que se repete ao ponto de uma mentira. Um jogo. Uma paródia. Um disfarce. Um deslocamento. Uma subversão. Uma repetição. Uma série de gestos. Um inventário de EUs. Uma dança sem frescura. Uma dança que se desloca para o movimento cotidiano banal. Um movimento banal que é uma dança. Uma dança que se quer de qualquer um para qualquer um. Dance dance dance e remexendo assim não pare pare pare.
12 - Que escolhas cada autor/intérprete vão fazendo?
Os autores são as roupas. As roupas geram PseudônimOs (PsOs). Os PsOs são os intérpretes. A multiplicação de autores equivale à multiplicação das roupas e consequentemente à multiplicação dos PsOs.
13 - O que move essa dança?
Pirucas, sapatos de salto alto, lápis de olho, batons, chapéus, óculos escuros, bolsas, botas, sombras de olho, grampos de cabelo, camisas, vestidos, saias, blushes, cintos, meias-calça, alfinetes-de-segurança, luvas, casacos, faixas de cabelo, bases compactas, blusas, espartilhos, enchimentos, polainas, jalecos, óculos de grau, óculos escuros, esmaltes, pulseiras, colares, brincos, cintas-ligas, calças de moletom, talleurs, soutiens, tops, chapeis cônicos de aniversário infantil, boinas, tênis, collants...
14 - O que comunicar através dessa dança?
Mecanismos de geração de identidade, identidade como a produção autoral de um si-mesmo.
Autoria como um mecanismo compartilhado, não havendo fronteira entre o que se produz e o que é produzido.
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Não há ser essencial dentro do envelope. Fundamentalmente é só o envelope.
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Evidenciar a co-autoria do si-mesmo com a roupa e o clichês sociais.
(Acima de tudo posto a cima, importa aqui lembrar que qualquer um dança, ou deixar dançar a dança de qualquer um)
15 - O que é coreografia?
Uma repetição insistente, uma parodia que forja uma identidade minimamente estável.
16 - Como quero/queremos coreografar essa dança?
Não queremos nada. A roupa quer. E através da roupa, o PsO pensa que escolhe o que quer.
Fundamental aqui deixar-se possuir pelas roupas, o corpo como cavalo de identidades.
17 - Desejo/amos coreografar essa dança?
A coreografia não se deseja, se impõe pela repetição dos atos. Os PsOs vão ganhando sua autonomia pela repetição de seus gestos, sua coreografia constantemente (re)parodiada. Sendo a autonomia equivalente a uma prisão em si mesmo:
A identidade, uma coreografia colada no corpo.
18 - Que estética aparece intrínseca nesse modo de dançar?
Cada PsO desenha sua estética. Nesse caso, seria necessário perguntar para cada um deles.
19 - Como criar juntos essa dança?
Trata-se de um trabalho impossível, de um delírio coletivo. De uma polifonia.
É um trabalho de muitas pessoas, os PsOs e suas progressivas autonomias. O fundamental é saber quando um PsO é dominante em relação aos outros. É preciso entender um jogo de entradas e saídas.
20 - O quê estou/amos criando juntos?
Identidades.
21 - Para quê criar essa dança?
Por que uma vez que se começa não se pode parar. Por que os PsOs impõem a si mesmos, procriam e exigem seu (re)aparecimento. É impossível não entrar na dança.
22 - Para quem criar essa dança?
Qualquer um.
Ninguém.
Cada um deles, os PsOs – Você não vê que eles estão chegando?
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