16 MULHERES E 1/2 | 2019 transe em trópico . módulo II: corpo como êxtase
08.04.19 | registros
Adriane De Luca
Logo que li o e-mail com os pedidos sobre os objetos e o alerta sobre a “irreversibilidade” do processo proposto, juntei a negação ao questionamento interno sobre os limites da minha participação, que já tinham sussurrado, desde quando falou-se em substâncias psicoativas. Guardados a ansiedade, o exagero e essa tendência à sabotagem, tentei entender, reduzir, enumerar algumas questões.
Não há qualquer objeto-afetivo que eu desejaria ver no meu enterro. Não há qualquer objeto-afetivo que eu desejaria me ver destruindo.
A morte se aproximou íntima e bruscamente para a minha criança aos sete anos. Irreversível nunca, delicada sempre. Meu devir é de (re)construir, não destruir.
As metáforas sempre explicam melhor a vida. Ajudaram a redirecionar a energia e encarar o exercício. Escolhi para destruir um objeto-memória de viagem. Um presente que ele menosprezara e eu guardei. O massageador. Metálico e pontiagudo. Agora que estava envolvida, tinha a certeza que direcionando a intenção, poderia ter até um certo prazer nessa ação. Pensava em esfregar no asfalto, desfigurar. Talvez até ver saírem faíscas. Mas choveu e a ação teria que se dar na sala. Tive que pensar outra estratégia para os 10 rounds. Então, com a mesma eficiência do fazer uma prova de vestibular, escolhi as questões mais fáceis para começar e garantir o desempenho minimamente satisfatório. Tirei a corda de fecho e arrebentei as costuras do saquinho de tecido que o guardava, desfiei tudo ao máximo que pude até ter de enfrentar o objeto em si. Comecei a girar uma das hastes metálicas e me surpreendi com a facilidade com que ela soltou da pega de madeira, depois torci ela deformando, de forma a que não voltaria a ficar reta. Fiquei motivada com essa sacada e repeti o mesmo com todas as hastes. O objeto já tinha ficado inútil, mas eu queria ver tudo em pedaços. Virou um desafio. A pega de madeira não seria fácil destruir. Tentei raspar com as pontas metálicas das hastes, mas mal afetou o verniz. Tentei roer, também em vão. Com a boca é ação é visceral. Gostei. O tempo acabou.
O cortejo devia ter durado muito mais. Tempo para o ritual se instaurar. Conexão ao novo estado dos objetos e do grupo. No altar resgatei meu repertório-conforto: construímos.
Para o enterro - que não vou ter pois quero ser cremada - busquei o objeto mais antigo que consegui que elas guardassem, mesmo com todas as mudanças de casa, de estado, de continente: ‘Arca de noé’. Que me traria alegria, sem dúvida. Vou saber todas as músicas quando esse vinil cor-de-rosa começar a tocar. Vinícius, bichos e cantores incríveis giravam na minha vitrolinha vermelha, eu cantava tudo de cor (di cuore). Misturamos às cartas, em que eu não matava nada em mim, ‘cala a boca já morreu’. E o exercício da cabeça. Tão difícil soltar tendo o corpo vivo, pronto para o movimento. O peso todo morto é um estado mais fácil de entrega, mas só a cervical dissociada me deixa confusa. Descoordenada.
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