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Impressões da Casa da Purpurina

CASA DA PURPURINA Nº 382.



O medo de vestir meus galhos e ocupar o espaço das casinhas era real. Ansiedade. Um estado de excitação quase infantil. Os passos apressados e o silêncio eram guiados por uma lanterna minúscula. Quando entrei no ambiente me senti à vontade, como se estivesse retornado a minha casa, onde permaneci durante anos. Incontáveis. Finalmente consegui respirar. Estado de alívio. A repulsa aos animais rastejantes, aos espaços invisíveis e aos cantos escuros haviam desaparecido por alguns instantes.

Apresentava o espaço às pessoas que entravam pela primeira vez, e todos eram muito bem vindos. Ali tínhamos vizinhos. Intimidades. Um sofá rasgado. Casas vazias. E muitas memórias misturadas, de existências desconhecidas, memórias inventadas, as antigas misturadas ás memórias recentes. Memórias eram construídas a cada instante da ocupação. Construídas e destruídas. Construídas e destruídas.

O tempo dilatava-se. Expandido. Fato é que em casa o tempo passa de outra forma, ou melhor, nunca passa. Três horas correspondem a 30 minutos no espaço-tempo-casa-memória. E lá eu poderia permanecer, durante horas infinitas. Paralisada. Percorrendo os espaços entre a minha casa, o corredor e as portas das casas dos vizinhos. Expandindo. Sumindo. Construindo e desconstruindo. Como um corpo-ser forte fragilizado.

O primeiro espaço ocupado foi o corredor. Encostei-me na porta da vizinha de frente, aquela de cachos vermelhos que vivia entre os móveis de miniatura de plástico, e descansava no estrado de uma cama de madeira escura. A porta da minha casa estava aberta, e através dela eu conseguia avistar os espelhos quebrados que estavam pendurados na parede do fundo da sala. Já não me reconhecia. As imagens eram recortadas, desconstruídas e reconstruídas. O corpo enrijecia. Imobilidade. Ali permaneci por algumas durações, e nascia um estado de irritação. Fios presos ao varal me impediam de permanecer ereta. Curvada, os galhos ficavam cada vez mais doloridos e pesados.

Encontrei-me pressa aos fios, o corpo completamente enroscado, torcido. E quanto mais eu tentava me soltava, era pressa, engolida por fios brancos. Os fios da moça que cantava fados e quebrava espelhos com um martelo, ela morava na minha sala. Ao movimentar as extremidades de forma lenta e ágil, consegui me liberar, entrando rapidamente na sala de casa, onde me sentia segura.

Dentro de casa o olhar rastreava o ambiente, fazendo o reconhecimento o mais rápido possível para sentir-se a vontade. Necessidade. Na sala árvores solitárias com as quais eu me identifico de certa maneira, espelhos partidos, objetos queimados, milhões de pregos, um varal de lã vermelha e preta com frases e desenhos de cantos do espaço pendurados, e inúmeros círculos desenhados a mão com carvão demarcando pequenas demolições. Meu corpo encolhido no canto voltava a respirar, e eu ajeitava os galhos do rosto com as pontas dos dedos. Ali estavam presentes duas outras pessoas, dançando entre os fios, uma rainha sorridente vendada, e uma moça de olhos transparentes gigantes. Elas não podiam me ver.

Desloquei-me agachada até a porta de casa, me dando conta de que a coluna havia tomado uma forma absurdamente curva, como um felino quando vai dar o bote para se defender. Recuei quando percebi algo ou alguém no corredor de cócoras, cavando o barro com as unhas longas e afiadas, uma mistura de pessoa com longos cabelos cobrindo o rosto e um bode. Era feroz e podia atacar a qualquer momento, amedrontava-me. Medo da Carolina. Medo de mim mesma. Medo do que pudesse acontecer. Medo de me movimentar. Medo de um estado interno de quase violência. Agressivo e frágil ao mesmo tempo. Contraditório e irreconhecível, como uma criatura meio minotauro meio centauro.

Ao notarem a minha presença, as pessoas felizes sumiram, afinal de contas, eu era um ser desconhecido. Comecei a bater os cascos nas tábuas de madeira da sala, com o intuito de demarcar território e afastar a mulher-bode, punindo-a, me punindo, como quando ela bateu com força as costelas na parede, emitindo um som agudo e cortante. Estado de repetição. Um som estridente ecoava por todo o espaço. Cacos de espelhos espalhados. Agora sim era o momento do enfrentamento. Agachei-me no barro ao seu lado, e penetrei os galhos da minha cabeça em sua cabeça, com força. Ela não podia enxergar, mas quebrou uma parte dos meus galhos. Senti dor. Alguns fiapos caíram dentro dos meus olhos, quando reconheci que se tratava da pessoa que morava no meu quarto, aquele no qual eu nunca entrava sozinha. Na parede tinha um armário com cordas e terra caía das gavetas. Silhuetas de pregos e velas presas às paredes. Lugar sujo e bagunçado. Afastei-me.

No corredor, em frente à porta do vizinho que escondia o rosto atrás de um capacete, havia uma mulher sem face, com cabeça de saco de papel marrom, que caminhava incessantemente de um lado para o outro. Voava ao seu redor, próxima a janela azul, a moça de olhos gigantes transparentes. Eu apenas observava como se fosse um ritual, ao mesmo tempo em que procurava controlar possíveis impulsos de movimentos arriscados.

Na porta de casa, Patrícia, ex-moradora, enforcava-se pendurada na janela, rodeada por inúmeras enforcadas. Talvez filha de Odair, ela tinha apenas 11 anos em 1995, 16 anos atrás, segundo contas, cadernos, diários e outros rastros encontrados por nós, os moradores atuais, nos armários mofados do banheiro. Iniciava-se um fado, cantado pela mulher da minha sala. E então eu fui me aproximando. Parecia que depois das mortes, o ambiente voltava a estabilizar-se. Vizinhos e visitantes em um estado de encantamento observavam a cantoria. Calma. Neblina.

Quase que hipnotizada voltei a entrar na sala de casa, mas possuída imediatamente por uma fúria, quebrava partes dos meus próprios galhos com as mãos, era como que cortar não as unhas, mas as pontinhas dos dedos, rasgando camadas de peles escondidas. Desnudar-se. Pressionei parte no pescoço e ao redor da clavícula esquerda, deixando arranhões. Vidros eram quebrados próximos ao meu rosto pela mulher dos fados, que já não mais cantava. Movimento de rachar o chão com os ossos dos pés. Exausta, me sentei em suas costas, puxando com as mãos seus cabelos, ela havia se transformado em um cavalo manso. Abraçou-me, e meu corpo desfez-se, envolvendo-a carinhosamente numa dança de gestos pequenos e sutis, e o olhar fixo diante das imagens dos poucos espelhos que restaram na parede ao fundo. Reconhecia-me.

Quando inesperadamente, notei parada no batente da porta impedindo a passagem, a criatura bode. Perseguia-me, mas antes que voltasse a atacar, fugi para a cozinha, onde eu realmente morava. Esconderijo. Toca. Na cozinha um balde de ferro, um armário branco com fôrmas de gelos vazias, e pendurado no teto, recordações da minha família. Deite-me ao chão para um longo respiro. Ouvia conversas, cheiros de café fresco e detergente entravam pelas narinas. Estava apegada ao lugar. Apegada aos vizinhos, aqueles que ocupavam o espaço ao meu lado, como àqueles que um dia passaram por lá. Talvez. Tudo seria demolido e eu não conseguia dormir. As saudades e a solidão já estavam presentes. Estado esquisito. Permaneço confusa.





O doido é que eu nunca te acuei. Louco como entramos num imaginário próprio muito denso, de uma textura muito particular. Inclusive, a loucura do animal me vei menos, ou de outra forma... através do impossível... já estamos tão longe dele. Apareceu-me apenas uma violência comigo mesma. Nem estava na chave do bode... estava na chave da mulher violentada. Que perde a face por conta de seu não lugar... Se eu estava bode, era o espiatório mesmo... Conversemos mais sobre isso...

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